Será que um indivíduo que foi detido em posse de menos de 20g de entorpecente pode ser enquadrado nos rigores da lei da mesma forma que um suspeito detido com um caminhão do mesmo produto ilícito?
Na terça-feira (8), o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) proibiu juízes e desembargadores da Justiça de São Paulo de levar à prisão os acusados por esse crime.
O tipo penal do tráfico ‘privilegiado’, previsto na Lei de Drogas de 2006, determina que réus apanhados com pequenas quantidades de entorpecentes, mas que sejam primários e não tenham antecedentes criminais e nem vínculos com organizações criminosas, possam responder em liberdade. Nas decisões do TJ-SP, no entanto, já era comum que a jurisprudência fosse constantemente menosprezada. E mesmo os condenados a cumprir a pena mínima eram levados à cadeia.
No que chamou de “insistente desconsideração”, o relator do caso, o ministro Rogerio Schietti Cruz, reconheceu o descumprimento da legislação sobre o tráfico de drogas e concedeu aos mais de mil detentos habeas corpus coletivo, fixando o regime aberto. O voto foi seguido de forma unânime pela 6ª Turma do STJ.
Para a Defensoria Pública de São Paulo, responsável pelo pedido analisado, a decisão foi “histórica”, como comenta à RBA o defensor público Mateus Moro, coordenador do núcleo especializado de situação carcerária, um dos núcleos da Defensoria que atuou na ação.
O caso de mais um homem negro, condenado por ter sido apreendido com 5,6 gramas de drogas, e que a Defensoria pediu um Habeas Corpus individual, pesou para que o aditamento do órgão – que estendia o HC de forma coletiva –, fosse acatado pela Corte. A decisão tem também caráter preventivo para impedir que a Justiça de São Paulo leve à prisão novos acusados de tráfico de drogas nessas condições.
Os condenados a penas de até 4 anos por tráfico privilegiado deverão ter também suas sentenças revistas. O Código Penal garante que, para esses casos, a pena de cárcere deve ser substituída por medida restritiva de direitos. Outras 2,6 mil pessoas podem ser beneficiadas.
Desde 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) também tem o entendimento de que esse tipo penal não pode ser configurado como hediondo, mas como crime comum, diferente do tráfico de drogas. Responsável por quase a metade dos encarceramentos por drogas de todo o país, de acordo com estudo da ONG Conectas Direitos Humanos, São Paulo também não estava em acordo com o entendimento.
“Não é alguém que está com um caminhão, com um helicóptero com quilos, toneladas de droga. São pessoas que estão com gramas, e que talvez, uma ou outra fossem usuárias, mas acaba sendo condenado por várias outras circunstâncias”, resume Moro.
Nesta entrevista, o defensor explica os efeitos da decisão do STJ e lembra que o número de pessoas presas indevidamente pode ser muito maior do que os números levantados em março pela Defensoria. Em 2019, ao menos 61,43% dos habeas corpus impetrados pelo órgão já tiveram êxito no STJ. O que significa dizer também que “o Tribunal de São Paulo, em 61,43% dos casos, tomou uma decisão que é ilegal ou inconstitucional, ou ambas”, como aponta o defensor.
Mas no estado que, “numa conta rápida, a cada 202 paulistas, tem um morador preso”, a decisão “vem como algo importante em relação, talvez, ao encarceramento em massa, à postura dos tribunais. Mas não é algo que vai quebrar essa estrutura de aprisionamento de pobres, porque ela faz parte da política de estado”, pondera Moro.
Questionado sobre quando será acatada a decisão e quantas pessoas serão beneficiadas, o TJ-SP disse que “não emite nota sobre jurisdicionais” e que o tribunal “está providenciando o cumprimento”.