Em seu ano de estreia, o documentário Ilegal (2014) lançou os holofotes sobre um tema até então considerado marginal pela maioria dos brasileiros: o uso medicinal da cannabis. A produção acompanha a jornada árdua de pacientes e familiares que descobriram no canabidiol (CBD) – princípio ativo extraído da planta – um alívio para dores crônicas e ataques epiléticos. Tive a honra de atuar como uma das realizadoras do filme e, à época, decidi fazê-lo após compreender como o acesso à informação era um elemento fundamental na desconstrução de preconceitos propositalmente incutidos na nossa sociedade em relação à cannabis.
“A cannabis é uma planta multifacetada. Talvez por isso ela tenha sido escolhida como alvo de proibicionismo em todo o mundo. Suas propriedades medicinais e industriais competem com muitos interesses econômicos poderosos, que prevaleceram durante décadas – quiçá séculos.”
Fomos, enquanto sociedade, vítimas de propagandas meticulosamente engendradas com o objetivo de nos tornar abstêmios do conhecimento e nos manter no preconceito – e compramos tais argumentos de forma barata.
O resultado é o que vivemos atualmente: a destruição da ancestralidade da planta e uma luta ferrenha de nós, ativistas, para trazer a verdade de volta à luz. Afinal, não tenho dúvidas de que o caminho pelo qual mentiras contadas no passado vão ao encontro de um presente de privação saiu muito caro para toda a sociedade.
Para ajudar a esclarecer os equívocos enraizados, gosto de explicar que existe um oceano entre cannabis e maconha. E sigo ressaltando, sempre que possível: cannabis não é maconha – a primeira é fabricada, enquanto a cannabis nasce da terra. Maconha é uma mistura de muitas coisas, que pouco têm, de fato, de cannabis. É um mato cheio de químicos que o tráfico entrega por aí, sem responsabilidade alguma. Cannabis é uma planta, cujos princípios ativos são capazes de trazer, comprovadamente, maior qualidade de vida a milhões de pessoas – e isso falando apenas de seu uso medicinal.
Há seis anos, quando gravamos Ilegal, pouco se falava sobre o tema no Brasil e as mães que participaram do documentário se sentiam sozinhas na batalha contra a desinformação. Evoluímos muito e todo este movimento foi capaz de desencastelar alguns de nossos deputados, que ouviram e aprenderam sobre o tema. Se informaram e temos hoje o Projeto de Lei 399/2015, cujo texto foi aprovado recentemente em uma Comissão Especial na Câmara Federal. Esse passo, embora ainda inconclusivo, representa uma esperança de levar o acesso à cannabis medicinal para todos os brasileiros.
“Atualmente, o uso medicinal da cannabis está concentrado apenas na elite financeira capaz de arcar com os altos custos do medicamento importado e em uma “elite da informação”, composta pelas poucas pessoas que conhecem os benefícios reais da planta e os meios para acessá-los, por meio da justiça, de associações de cultivo ou outros caminhos.”
Ainda não é uma legislação à altura da complexidade do assunto, mas é um avanço.
Em maio deste ano, foi lançada a pesquisa “Cannabis é Saúde”, realizada pelo CIVI-CO, hub de negócios de impacto cívico-socioambiental. O levantamento ouviu a opinião de brasileiros de todas as regiões sobre o uso da cannabis medicinal. Os resultados demonstraram que 76% do público já está familiarizado com a possibilidade de aplicação terapêutica da cannabis. Porém, 59% ainda não possui dimensão das patologias que podem encontrar na medicina canabinoide formas alternativas de terapia. Apenas 14% da amostra sabia que os médicos podem prescrever fármacos à base de cannabis, algo permitido desde 2015, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 17, autorizando a importação de medicamentos à base de canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC).
“Precisamos trabalhar exaustivamente para disseminar informação real e criar uma cultura em torno da cannabis.”
Levando informação a todos, deixaremos de ser taxados preconceituosamente como maconheiros e passaremos a ser entendidos como o que realmente somos: ativistas pela vida, pela democratização da saúde pública e pela garantia de direitos.
Se não formos no caminho da educação e da distinção semântica das palavras, vamos continuar vivendo em uma sociedade que considera o uso da cannabis como “medicinal ilegal”. Desta forma, seguiremos envolvidos em um falso debate polarizador, colocando de um lado segurança pública e do outro saúde pública e vida.
“Manteremos as mangas arregaçadas e falaremos de cannabis em todos os lugares. Precisamos retomar a ancestralidade desta planta, tão presente nas culturas indígena e negra.”
A cannabis foi usada para a saúde e a promoção de bem-estar ao longo de centenas de anos, até uma propaganda bloquear a história, impedindo a transferência do conhecimento de geração para geração. Já passou da hora de olhar para a realidade, esquecer o preconceito e desfazer essa injustiça. Vamos repetir muitas vezes: cannabis não é maconha.
*Patrícia Villela Marino é advogada e ativista cívico-social. Cofundou e lidera o Instituto Humanitas 360, trabalho pelo qual foi reconhecida com o Prêmio Humanitário 2020, concedido pelo The Trust for the Americas, afiliada da Organização dos Estados Americanos (OEA) e colunista do Sechat.
Fonte: https://sechat.com.br/cannabis-nao-e-maconha/ Data: 28/06/2021.